Front running e de-risking: o paradoxo da regulação financeira na era da IA
O presente texto explora o dilema entre punir ilícitos como o front running e evitar exclusão financeira pelo de-risking, mostrando como a IA pode conciliar integridade e inclusão.
Barreto & Pinheiro Advogados Associados
10/25/20258 min read


1. Introdução
O sistema financeiro contemporâneo enfrenta um paradoxo regulatório significativo. A necessidade de combater práticas ilícitas como o front running exige mecanismos de supervisão sofisticados, enquanto a pressão regulatória excessiva tem gerado o fenômeno do de-risking, onde instituições financeiras encerram relacionamentos com clientes considerados de alto risco, comprometendo a inclusão financeira.
Só no terceiro trimestre de 2024, a CVM identificou mais de 50 casos com indícios de crimes no mercado [1], demonstrando a persistência de práticas ilícitas. Simultaneamente, estudos internacionais indicam que o de-risking tem afetado desproporcionalmente populações vulneráveis, criando barreiras ao acesso a serviços financeiros essenciais [2].
Ao mesmo tempo, a inteligência artificial surge como tecnologia transformadora capaz de oferecer soluções para ambos os desafios, processando grandes volumes de dados e realizando avaliações individualizadas de risco que podem revolucionar tanto o combate ao front running quanto a mitigação do de-risking [3].
2. Front running: anatomia de um crime financeiro sofisticado
2.1 Tipificação legal e estrutura do delito
Front running é a prática em que o intermediário do mercado de capitais, normalmente um corretor de valores, utiliza informação privilegiada e restrita para realizar negociações em benefício próprio antes de executar as ordens recebidas de seus clientes. Em outras palavras, o profissional “antecipa-se” às operações que irá intermediar, explorando a oscilação de preços que essas transações provocarão, com o objetivo de lucrar.
Um caso típico é quando um corretor ou agente de investimentos recebe a solicitação para comprar ou vender um volume significativo de ações de determinada companhia. Sabendo que a ordem causará impacto imediato no preço, ele insere previamente uma ordem menor, em nome próprio, para se beneficiar do movimento de mercado subsequente.
Dessa forma, o agente “sai na frente” se valendo de informações obtidas no exercício da profissão e, assim, caracterizando o front running. É importante ressaltar que deter informações não constitui crime por si só; o ilícito ocorre quando elas são exploradas para obter vantagem econômica de forma indevida.
No ordenamento jurídico brasileiro, encontra-se tipificado no artigo 27-C da Lei 6.385/1976, estabelecendo pena de reclusão de um a cinco anos, além de multa [4].
A estrutura típica desse crime exige elementos objetivos específicos: existência de informação relevante não divulgada, conhecimento desta informação pelo agente em razão de sua posição, dever de manter sigilo, e realização de negociação baseada nesta informação privilegiada.
Por fim, podemos resumir o tipo da seguinte forma:
· Bem jurídico protegido: integridade e transparência do mercado de capitais, igualdade de condições entre investidores e confiança do público no sistema de negociação de valores mobiliários;
· Sujeito ativo: quem tenha acesso legítimo à informação relevante e deva manter sigilo sobre ela (crime próprio);
· Sujeito passivo: o mercado de capitais e seus participantes (imediato) e investidores que negociam sem acesso à mesma informação (mediato);
· Objeto material: valores mobiliários definidos na Lei nº 6.835/76 (ações, debêntures, cotas de fundos, contratos derivativos etc.);
· Conduta típica: utilizar (verbo nuclear) informação relevante ainda não divulgada ao mercado. A informação deve ser relevante (capaz de influenciar de forma significativa a decisão de compra ou venda de valores mobiliários ou de impactar o preço dos ativos), não pública (não acessível de forma geral a todos os participantes do mercado), obtida em razão da função, cargo ou relação (com a companhia ou com o cliente) e sigilosa (cujo dever de reserva decorra de lei, contrato ou função exercida).
· Elemento subjetivo: dolo específico de obter vantagem indevida para si ou para terceiros, exigindo-se consciência de que a informação é relevante e não pública e de que há obrigação de mantê-la em sigilo.
· Consumação: consuma-se com a realização da negociação (compra, venda ou outra operação) utilizando a informação privilegiada, ainda que não haja lucro efetivo. A tentativa é possível se a execução for interrompida antes da negociação (ex: ordem é inserida, mas cancelada antes da execução).
· Elemento normativo – “deva manter sigilo”: é indispensável que o agente tenha dever jurídico profissional de guardar a informação, não sendo aplicável a quem obtém o dado de forma fortuita sem vínculo com a fonte legítima. No front running, esse dever nasce da relação fiduciária entre o intermediário e o cliente.
· Natureza do crime: formal, não exigindo lucro efetivo, bastando a negociação com base na informação privilegiada, e doloso (sem modalidade culposa prevista).
2.2 Front running x Insider trading
O front running guarda semelhança com o insider trading, mas não é idêntico. No insider trading, a informação sigilosa é obtida de dentro da própria empresa emissora dos valores mobiliários, enquanto no front running ela decorre do conhecimento de ordens de clientes obtido por um intermediário do mercado.
No front running, o corretor se antecipa à execução de ordens volumosas e, ao fazê-lo, lucra com a alteração de preços provocada pela transação que deveria intermediar de forma imparcial.
Já no insider trading, qualquer pessoa com acesso a dados relevantes e não públicos de uma empresa listada, como administradores, diretores ou funcionários, pode cometer o ilícito se negociar valores mobiliários para obter ganho próprio ou para terceiros antes que essas informações sejam divulgadas ao mercado.
2.3 Sofisticação tecnológica e casos emblemáticos
A evolução tecnológica dos mercados financeiros tem proporcionado novas oportunidades para front running, especialmente através do High-Frequency Trading (HFT). A recente Operação Rabbit, deflagrada pela Polícia Federal em agosto de 2024, evidenciou a complexidade dessas práticas e a necessidade de ferramentas investigativas avançadas [5]. Essa operação apurou um esquema em que funcionário de uma DTVM repassava ordens de clientes a conhecidos, permitindo que estes realizassem operações antecipadas. O grupo obteve mais de 94% de acerto em operações de day trade, acumulando R$ 5 milhões em bens e valores sequestrados
Outro caso emblemático é o do HSBC, que ilustra a magnitude dos prejuízos: operadores compraram libras antecipadamente sabendo de transação de US$ 3,5 bilhões, resultando em multa de US$ 175 milhões [6].
No Brasil, o caso Credit Suisse demonstrou a criatividade dos agentes, com operador utilizando conta da avó para 340 operações de day trade, gerando multa de R$ 500 mil e suspensão de 10 anos.
3. O Fenômeno do de-risking: quando a prudência se torna exclusão
3.1 Definição e manifestações
O de-risking, definido pela FATF como prática de encerrar relacionamentos comerciais para evitar riscos ao invés de gerenciá-los adequadamente, representa efeito colateral significativo do fortalecimento das regulamentações antilavagem [7]. O endurecimento das penalidades, exemplificado pela Lei 13.506/2017 que elevou multas da CVM para até R$ 50 milhões, criou incentivos para posturas excessivamente conservadoras.
Esse fenômeno se manifesta através do encerramento sumário de contas, recusa de abertura para determinados perfis e restrição de serviços com limites artificialmente baixos. A complexidade crescente das obrigações de KYC tornou proibitivamente custosa a manutenção de relacionamentos com segmentos vulneráveis.
3.2 Impactos na inclusão financeira
O caso da Somália ilustra dramaticamente as consequências: após o Barclays encerrar relacionamentos com transmissores de dinheiro em 2013, 40% da população que dependia de remessas foi forçada a utilizar canais informais menos transparentes [8]. Esta migração não reduziu riscos de crimes financeiros, mas sim os aumentou, impedindo o desenvolvimento do setor bancário formal.
O overcompliance, conceito relacionado ao de-risking, refere-se à adoção de medidas que excedem significativamente as exigências regulamentares. Ele surge da combinação de incerteza regulatória, aversão ao risco institucional e custos crescentes de compliance que apenas grandes instituições conseguem absorver.
4. Inteligência artificial como solução integrada
4.1 Capacidades no combate ao front running
A IA oferece ferramentas analíticas de sofisticação sem precedentes, processando milhões de transações simultaneamente e identificando anomalias impossíveis de detectar por métodos tradicionais. Sistemas de machine learning podem reconhecer padrões sutis que precedem operações de front running, como correlações temporais entre recebimento de grandes ordens e execução de operações próprias.
A análise de redes neurais permite mapear relacionamentos complexos entre agentes, identificando estruturas ocultas de esquemas coordenados. O processamento de linguagem natural tem se mostrado eficaz na análise de comunicações eletrônicas, identificando linguagem codificada ou indicações de compartilhamento de informações privilegiadas [9].
4.2 Mitigação do de-risking através de avaliação individualizada
Sistemas de IA podem realizar avaliações de risco individualizadas e dinâmicas, superando limitações das abordagens categóricas. Algoritmos de machine learning analisam múltiplas variáveis simultaneamente, considerando não apenas fatores estáticos como localização, mas também padrões comportamentais dinâmicos e redes de relacionamentos.
A capacidade de processamento de big data permite incorporar fontes diversificadas na avaliação de riscos, incluindo dados de redes sociais, registros públicos e bases governamentais. Essa visão holística permite identificar clientes de baixo risco mesmo em categorias tradicionalmente consideradas de alto risco, reduzindo exclusão desnecessária.
4.3 Redução de falsos positivos
Um dos maiores benefícios da IA é a redução significativa de falsos positivos. Estudos demonstram que sistemas de IA podem reduzir falsos positivos em até 80%, permitindo que analistas concentrem esforços em investigações promissoras [10]. A capacidade de aprendizado contínuo permite adaptação constante a novas técnicas criminosas, mantendo relevância e eficácia.
5. Framework integrado: proposta de implementação
5.1 Princípios fundamentais
O framework proposto baseia-se em quatro princípios: proporcionalidade (medidas adequadas aos riscos efetivos), individualização (avaliação baseada em circunstâncias específicas), transparência (clareza sobre critérios de decisão) e adaptabilidade (capacidade de evolução contínua).
5.2 Arquitetura tecnológica
A implementação requer plataforma de IA híbrida combinando diferentes técnicas de machine learning. Módulos especializados incluem: análise transacional para monitoramento em tempo real, análise de comunicações para identificar compartilhamento de informações privilegiadas, análise de redes para mapear relacionamentos suspeitos, e avaliação individualizada de riscos considerando múltiplas dimensões do perfil de cada cliente.
5.3 Governança e implementação
A governança deve envolver comitê multissetorial com representantes da CVM, Banco Central, instituições financeiras e sociedade civil, além de implementação gradual através de programa piloto de 12 meses com instituições voluntárias, seguida de expansão com suporte técnico adequado.
6. Implicações jurídicas e regulatórias
6.1 Adequação ao Ordenamento Brasileiro
A implementação deve respeitar o devido processo legal (art. 5º, LIV da CF) e a LGPD, garantindo que decisões automatizadas sejam passíveis de revisão humana e que critérios algorítmicos sejam transparentes. O artigo 20 da LGPD estabelece direitos específicos sobre decisões automatizadas que devem ser rigorosamente observados.
6.2 Responsabilidade e Cooperação Internacional
A distribuição de responsabilidade civil por danos causados por decisões incorretas deve ser equitativa entre desenvolvedores, operadores e usuários. Mecanismos de seguro podem garantir reparação adequada às vítimas. A cooperação internacional através de organizações como FATF e IOSCO é essencial para harmonização regulatória e compartilhamento de informações.
7. Conclusões e recomendações
A análise demonstra que front running e de-risking representam faces de um mesmo desafio regulatório: equilibrar integridade e inclusão financeira. A IA oferece oportunidades sem precedentes para resolver este paradoxo através de detecção sofisticada de crimes e avaliações individualizadas de risco.
Recomendações para reguladores:
- Desenvolvimento de programa piloto para sistemas de IA no combate ao front running
- Revisão de regulamentações para incorporar orientações sobre uso responsável de IA
- Estabelecimento de coordenação entre órgãos reguladores
- Investimento em capacitação técnica das equipes
Recomendações para instituições financeiras:
- Investimento estratégico em soluções de IA para compliance
- Programas de treinamento para equipes especializadas
- Parcerias com fornecedores de RegTech
- Participação ativa em programas piloto
O framework integrado proposto representa passo importante na direção de regulação mais eficaz e inclusiva. Sua implementação bem-sucedida depende da colaboração entre todos os stakeholders, garantindo que a transformação tecnológica sirva aos interesses da sociedade, promovendo simultaneamente integridade e inclusão financeira.
Referências
[2] https://finintegrity.org/the-risks-of-de-risking/
[4] BRASIL. Lei nº 6.385, de 7 de dezembro de 1976.
[6] https://simply.law/england-wales/articles/the-forex-market-and-hsbc/
[10] https://www.acamstoday.org/the-use-of-ai-and-machine-learning-in-financial-crime-compliance/


Contato
contato@barretoepinheiro.adv.br
(61) 99400-6384 | (11) 94040-4340
Atuamos no DF - SP - PI
